sexta-feira, 2 de setembro de 2016

As mulheres de Almodóvar em Aquarius

Filme Tudo sobre minha mãe, de Pedro Almodóvar

As mulheres De/Para/Em Almodóvar choram, brigam, querem morrer, perdem a esperança, 
tentam suicídio, 
amam, 
caem. 
Ficam caídas, imóveis. 

Respiram, vão-se levantando com a força de lobos e andorinhas, como se o tempo da queda fosse apenas um descanso. 

E, erguem-se, essas mulheres de Almodóvar! Lesionadas, partidas, amputadas, diferentes de antes, transformadas pela experiência abrem-se para a vida novamente.

Parte do elenco feminino de Aquarius
Mais ou menos assim são as mulheres do filme brasileiro Aquarius. Não apenas Clara, a personagem principal interpretada por Sônia Braga, mas as que circundam sua vida.


Tela de Portinari
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Euclides da Cunha era um “menino do Rio”, culto, jornalista, que pela primeira vez viu o sertão, viu a terra sem mar, viu gente sobrevivendo a despeito de falta d'água e comida. Estava em Canudos como jornalista dO Estado de São Paulo para cobrir a última fase da Guerra. De suas anotações veio o livro Os Sertões, onde está a frase tão conhecida, citada acima. 
Os soldados em Canudos, nas conversas insones das noites cansadas, contavam entre si sobre seus planos para quando voltassem ao Brasil. Euclides anotava. Os soldados que morreram e mataram não compreendiam estar lutando contra brasileiros.
Diante de um povo sem pátria, sem conforto, sem defesa e que ainda assim vivia e lutava, o que poderia pensar o jovem Euclides? Se, ao contrário de ter retornado ao Brasil ele tivesse continuado no sertão talvez entendesse que ali “se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia” como decantou João Cabral de Melo Neto no poema Morte e Vida Severina.


Clara (Sônia Braga) em frente ao prédio onde mora

A recifense Clara é crítica musical e escritora. Viajou, conheceu o mundo e escolheu viver em Recife até o fim de seus dias, em seu apartamento que-não-está-à-venda embora todos os demais do Edifício Aquarius já sejam da grande construtora que quer substitui-lo por uma moderna torre. Clara até poderia mudar de ideia com o tempo, mas essa seria uma decisão dela. Ela está em sua casa e mesmo ali, no espaço mais íntimo e privado que se pode ter, a ganância alheia lhe bate à porta.

Sobre a força da mulher fala-se quase como Euclides falou sobre o sertanejo. Tecem elogios à nossa força e resistência – mais em maio, para vender perfumes, e em outubro por causa do Outubro Rosa (não, nada a ver com as eleições que ocorrem nesse mês). Falam de nós, para nós, na terceira pessoa, como se não estivéssemos no recinto.

Clara está no recinto. É protagonista de sua vida, assim como Nise da Silveira, Zuzu Angel e outras mulheres retratadas no cinema brasileiro.

Filmes em que as mulheres são autoras da própria história sem usar de violência ou perder sua capacidade – humana, demasiado humana¹ – de superar-se e seguir de maneira íntegra e leal a si mesmas são cada vez mais bem-vindos!



Aquarius me inspira a buscar outra forma de militância, inclusive outro nome, pois desejo poder estar onde eu quiser, no espaço público ou privado, sem lutar, “sem perder a ternura²”. Em paz.


¹ Parafraseando o livro "Humano, demasiado humano", do filósofo Nietzsche;
² "Endurecer sem perder a ternura" é frase atribuída a Che Cuevara, porém acho tão a cara de Gandhi!

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